Lavando e enxaguando palavras:
A hibridez no relatório político
A principal transgressão da professora Sônia Jaconi está em conseguir traduzir a graça do mestre Graça, a partir da refinada ironia que seus textos possibilitam, mas muito particularmente, os famosos relatórios políticos que escreveu quando prefeito de Palmeiras dos Índios, no início do século XX. Orientada pelo igualmente ilustre alagoano José Marques de Melo, a autora não somente ouviu as palavras norteadoras do mestre, mas soube trilhar seus próprios caminhos, vindo a Alagoas para conhecer de perto a cidade e os arquivos da Casa Museu Graciliano Ramos, acessando fontes primárias raras.
O resultado dessa autonomia de rota está em cada página do delicioso livro que agora chega às mãos dos leitores com aspectos qualitativos memoráveis: estilo, objetividade, concisão, paixão. Resultado de pesquisa doutoral defendida no dia 17 de abril de 2012, na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e da qual tive a honra de integrar a banca, esta investigação recupera facetas de Graciliano Ramos que transitam do namorado ao prefeito, migrando para o literato. São muitos os Gracilianos que se encontram nesta narrativa…
Um dos méritos deste trabalho é identificar na tarefa árdua de escrita graciliânica, um caráter de hibridez que propicia a pesquisadores das mais diversas áreas, produções interdisciplinares qualitativas. Graciliano Ramos cumpriu uma tarefa psicossocial – em sua narrativa – como prefeito que soube ler, como poucos, a emoção das pessoas com as quais conviveu, pois entendeu suas dificuldades (materiais, cognitivas, emocionais, etc…), bem como os impasses impostos ao seu povo pela própria política…
Há um político inovador que revela cansaço em suas narrativas: na carta de amor que escreve à Dona Heloísa traz um sentimento de culpa por tocar no assunto política e sua insatisfação com o cargo. Ao indicar que não dá para o ofício e qualquer dia renuncia, o escritor elenca um verbo que antecede seu desejo (renunciar) e que já o posiciona descontente com a realidade que vivia na posição de gestor. Em síntese, ao longo deste estudo, a autora vai lavando e enxaguando as palavras do escritor (para usar a própria metáfora do autor) e comprova o quanto, a partir da seleção do léxico, traduzia o mundo e suas vivências.
Ao investigar o gênero relatório nos estudos jornalísticos, Sônia Jaconi mostra a transgressão da norma, mas ao mesmo tempo indica a estrutura interna própria deste estilo. O que atrai nos relatórios de Graciliano Ramos é a simbiose entre gêneros aparentemente díspares: texto oficial, texto jornalístico, texto literário – transformando-se em discurso original cuja validade e atualidade permanecem até o tempo presente, quando o correio eletrônico já foi igualmente validado como documento.
As perguntas norteadoras do estudo serviram como um mapa cognitivo afetivo da literatura que Graciliano Ramos premiou o mundo: Quais as condições que levam o prefeito Graciliano a transgredir a norma e a refletir de forma tão contundente e ao mesmo tempo tão lírica sobre a Princesa do Agreste? Quais os elementos textuais relevantes que tornaram possível essa passagem do prefeito para o campo da literatura – e que já estava de certa forma anunciado até nas cartas encaminhadas à namorada Heloísa?
O mérito dos dois relatórios do prefeito Graciliano Ramos reside justamente nessa estranheza que gerou em leitores de todo o País – já que foram publicados no Diário Oficial – por não se ajustar a uma única forma. É difícil indicá-los meramente como documentos, já que o estilo nos remete em alguns trechos a uma escrita objetiva, numa pressa típica do jornalismo cotidiano, bem como a uma narrativa com alto valor literário e que o leva ao reconhecimento por parte dos editores e escritores que foram seus contemporâneos. O próprio Graciliano informou, em reflexão sobre o início da carreira: “[…] fui eleito prefeito e enviei dois relatórios ao governador. Lendo um desses relatórios. Schimidt imaginou que eu tinha algum romance inédito e quis lançá-lo. Realmente o romance existia, um desastre. Foi arranjado em 1926 e apareceu em 1933” [Caetés, seu romance de estréia]”. O resto é história…
Rossana Viana Gaia (IFAL)
Maceió, outubro de 2013.