Delia Dutra

Migração internacional e trabalho doméstico: Mulheres peruanas em Brasília

Estamos diante do resultado de uma pesquisa original que oferece a possibilidade de tratamento de fenômenos contemporâneos, se calcando metodologicamente em recortes originais. De um lado, tratar aspectos da migração intercontinental na América Latina que, apesar do seu recrudescimento nessas últimas décadas, ainda carece de estudos empíricos mais profundos, especialmente na América do Sul. De outro, o recorte de gênero no tratamento da problemática migratória no continente se somando a uma boa quantidade de estudos feministas que vêm se desenvolvendo em nossos países. Finalmente, o foco sobre uma das modalidades de manifestação de processos de mudança social em curso no continente, onde assume formas peculiares.

A partir de um grupo de mulheres peruanas, as quais moram em Brasília e trabalham em serviços domésticos, construiu-se uma problemática onde, através de pesquisa empírica, decodifica-se o cotidiano na cidade e os mecanismos de interação social ali existentes. A base de referência do objeto da pesquisa é, portanto, a imigração feminina. Uma temática relativamente ainda pouco trabalhada, mesmo se considerarmos a tradição de estudos migratórios na sociologia. Metodologicamente, a abordagem centra no que a autora denomina de espaço psicofísico: as motivações individuais, as relações familiares, a origem social e cultural, o grupo de referência, o status da profissão exercida, a experiência urbana no presente e passado e as relações sociais de gênero dentro e fora do núcleo familiar. Percebe-se que o universo dessas mulheres migrantes é tratado de forma totalizante, cobrindo diversas dimensões de vida e que, no conjunto, são elementos de uma identidade em processo de adaptação.

A metodologia qualitativa utilizada no trabalho enriquece-o na medida em que nos mostra quase que corporalmente os efeitos de uma decisão aparentemente simples, porém plena de significados individuais, sobre a partida para o estrangeiro à procura de melhoria de vida. Os meandros através dos quais os vínculos sociais se costuram dentro de um puzlle vão, aos poucos, tomando forma e sentido. Inclusive nos aponta para a especificidade de Brasília, onde as imigrantes transitam em ambientes também de estrangeiros, que guardam valores sacralizados e se reproduzem numa rígida estrutura social, com suas regras próprias de reprodução. É neste cenário, onde impera uma estabilidade mórbida, cuja estrutura tem forte dose de conservadorismo, que brotam as dificuldades de inserção social captadas na pesquisa pela estreita decodificação das subjetividades das mulheres entrevistadas.  A densidade de algumas vai em paralelo à fragilidade de outras, e no fundo, estão refletindo certo comodismo e a reprodução estática dos códigos e das trajetórias nas sociedades tradicionais de origem. Isso é regra quase segura em ambientes conservadores onde certas personagens não se esforçam no desempenho de novos papéis sociais, pois obedecem as regras já escritas a priori. Outras personagens, ao contrário, estão em permanente conflito com o status quo, procurando novos caminhos, recusando a assumir e desempenhar um papel que foi escrito por outros. Querem construir a sua própria história e para isso vivem a grande aventura da vida, plena de contradição. O que é instigante nesse cenário é o recado dado de que ninguém escapa da sociedade, mesmo quando se decide partir ao estrangeiro, e viver nela pressupõe sempre uma dose de sofrimento, onde consciência e inconsciência se misturam num tempo que não se pode controlar.

 

Brasilmar Ferreira Nunes

Professor Titular do Departamento de Sociologia da UnB. Pesquisador do CNPq e da FAPERJ.